Deputado federal ultradireitista e cantora popular ultralibertária se engalfinham em um bate-boca virtual e troca de acusações sobre homofobia e racismo
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Nova novela estreou no Brasil. Não é obra de ficção, qualquer semelhança não é mera coincidência. Novela real. Daí, importante. Daí, a audiência. Protagonistas definidos: Preta Gil e Jair Bolsonaro. Sinopse: Deputado federal ultradireitista e cantora popular ultralibertária se engalfinham em um bate-boca virtual e troca de acusações sobre homofobia e racismo. Espectadores: o povo brasileiro. Problema: quem eleger para mocinho(a) e para vilão(ã)? A cada capítulo, desde o primeiro, a maioria, pelo menos os que botam a cara, fez sua escolha: Bolsonaro é o bandido.
Mas talvez haja um problema maior que as declarações do malfeitor. Os espectadores inertes. Os que não se manifestam, os que acham que não é com eles, não tão nem aí. Os que opinam de leve, que ficam sobre a corda bamba, pendendo pra lá e pra cá, para evitar desagradar estes ou aqueles.
Meio covardes, meio simpáticos. Mais covardes que simpáticos. Sob a desculpa da convivência pacífica, do cada um na sua, do não é comigo, do tô nem aí, tenho meus próprios problemas.
Meio racistas e homofóbicos também. Daqueles cordiais. Adeptos do “não tenho nada contra”, do “até tenho amigos gays e negros”, mas “filho meu ser gay? Não”, “filha minha casar com negro? Não”. Do “aceito, só que da porta pra fora”.
Propagam o livre pensar, o livre dizer, o doa a quem doer, a democracia ampla.
É tipo aquele senhor gordo que vai comprar pão e conversa sobre os assuntos do dia. Surge o tema: Preta Gil x Bolsonaro. “Não é problema meu. Quero nem saber. Por mim, cada um vive com quem quiser. E fala o que quiser.”
Mas algum desconhecido apela ao balconista: “Me dá aquela torta de chocolate que tá junto do velho gordão suado.” Aí bateu, ofendeu, começou a arder. Aí cada um não pode mais dizer o que quer. O direito à livre opinião parou.
Tipo o cadeirante, que está esperando um ônibus, que começa a falar do tema: Preta Gil x Bolsonaro. “Não é problema meu. Quero nem saber. Por mim, cada um vive com quem quiser. E fala o que quiser.” Mas o ônibus chega, ele leva um tempo para conseguir subir. Um passageiro resmunga: “Estes aleijados só servem para atrapalhar. Tô atrasado. Arranca, motorista!” Aí bateu, ofendeu, ardeu. Aí cada um não pode mais dizer tudo o que quiser. O direito à livre opinião parou.
Tipo aquela modelo que usa roupas provocantes, que vai ao supermercado e é o colírio da galera, que, entre a reclamação sobre um preço que subiu e a qualidade que caiu, começa a falar sobre Preta Gil x Bolsonaro. “Não é problema meu. Quero nem saber. Por mim, cada um vive com quem quiser. E fala o que quiser.” Mas eis que passa um marido e dá um olhada mais afiada nela. Eis que atrás vem um esposa e dispara: “Tá olhando o quê para esta piranha? Você só se interessa por estas com pinta de vagabundas”.
E aquele nordestino, que vai tentar a vida no Sudeste, que no percurso até lá vai trocando ideias com outro e surge o tema: Preta Gil x Bolsonaro. “Não é problema meu. Quero nem saber. Por mim, cada um vive com quem quiser. E fala o que quiser.” Mas no desembarque, logo que seu sotaque é reconhecido, ouve de longe: “Mais um destes paus de arara miseráveis para poluir a cidade. Por que estes merdas não ficam lá na merda deles?” Aí bateu, ofendeu. O direito à livre opinião parou.
E os exemplos se sucedem. Tem o saradão que acha injusto ser taxado de muita massa muscular e pouca massa cinzenta. Tem o estudioso baixinho e magro que não para de ser zoado de nerd babaca e donzelo.
Ninguém escapa. Ninguém é só audiência. Um dia te batem. Aí cada um não pode mais dizer tudo o que quer. O direito à livre opinião parou. Pois ele só é válido se é no outro que dói.
Ainda não se convenceu? Ainda se acha acima, se acredita ileso? Há um preconceituoso em algum lugar, com qualquer motivo, para te enquadrar, te rotular, estigmatizar. Se não for no Brasil, será no exterior. Lá fora, latino-americano é sub-raça, subdesenvolvido, sujo, folgado, digno de vigilância. Constrangido em aeroportos, detido sem direito a se explicar, deportado por desconfiança, por não importar, por ser tido como menor.
Um “tanto faz, tanto fez, tanto fará” pode te custar muito lá na frente. Ideias nocivas começam pequenas, parecem leves, insignificantes. Mas fermentam. Criam ecos, cutucam ódios adormecidos, hipnotizam. Assim o nazismo se espalhou na Alemanha, deu no que deu e ainda hoje células persistem. Hitler não nasceu comandante. Chegou lá tijolo por tijolo.
Deixar o ódio rolar solto é deixar livre o contágio. Se Nelson Mandela disse que “as pessoas aprendem a odiar” é por saber, de duríssima vivência, que com ódio não se brinca.
Ódio é matreiro, retórico, transtorna, compele, embriaga. Busca mentes frágeis, prontas para a conquista. Sempre encontra um espaço, uma fresta, se esgueira e se dissemina.
Se hoje, século 21, há quem pregue que os negros são descendentes de um amaldiçoado neto de Noé, é porque ódio não é brinquedo não. Se a escravidão, se os massacres, se as torturas, os apedrejamentos, as mutilações, vivem em eterno vaivém na história, legalizados ou na moita, é porque ódio se transforma, se disfarça, se aloja onde é mais conveniente.
Ódio sorri, conversa contigo, te afaga, tem argumentos, diz que te respeita. Cerca, dá o bote e envenena. Ódio fala de amor, de direitos, mostra-se a serviço de um mundo perfeito, para que a sociedade seja melhor, mais igualitária, mais honrada. Ilude o próprio dono.
Alavanca o que há de pior nas pessoas e faz elas crerem que é o melhor. Incita ataques. Ódio reprime, espanca e assassina parceiros de uma vida e o próprio sangue alegando “amar” demais. Disfarça a injúria em direito de opinar.
Ódio também é um preconceituoso cordial, ditador afável. “Por mim você não existiria, mas, já que existe, a gente pode se dar bem, basta seguir as minhas regras.” É barulhento, porém, plácido quando precisa. Espectador de poltrona, cerveja e salgadinho. Deixa rolar. “Não é problema meu. Não me meto. Se resolvam. Não sou homossexual, não sou negro. Por mim...” Se passa por indiferença quando está mais para desprezo.
Só que ódio não tem freios, nem limites. Só para se forçado. Diante das câmeras usa palavras estudadas, a porta fechadas solta o verbo para denegrir pesado.
Ajudante de vilão de filme. Traíra. No capítulo de amanhã, a alegação pode ser outra, o enredo toma outro rumo, reviravolta na novela, de acordo com a opinião do público, por essa ou por aquela diferença humana que se resolveu não aceitar. Aí pega em você, nos seus filhos, nos seus pais. Aí bateu, ofendeu, navalhou sua carne.
Sangrou. Aí cada um não pode mais dizer tudo o que quiser. O direito à livre opinião, para você, parou.
Por Miguel Rios
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